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DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.4676257
Katia Gomes da Silva
Mestre em
Relações Étnico-Raciais pelo CEFET RJ, Pós-Graduada em Relações Étnico-Raciais
e Educação pelo CEFET RJ, Pós-graduada em História da África e do Negro no
Brasil pela UCAM, Pedagoga pela Unyleya e Licenciatura em História pela UCAM.
E-mail: 26@katia.silva@gmail.com
RESUMO
A presente pesquisa é sobre a metodologia
relacionada aos temas de educação e das relações étnico-raciais. Trata-se de
uma pesquisa inicial, bibliográfica, de caráter exploratório, acerca da
educação e suas intersecções com as relações étnico-raciais, desenvolvida para
a conclusão do curso de Pedagogia pela Unyleya. Buscamos o revisitar conceitual
e de teóricos para, em diálogo, construir uma forma de entender e pensar a
educação com as relações étnico-raciais. Com isso, trouxemos algumas reflexões
visando contribuir para o debate mais amplo que envolve a luta antirracista na
educação, ao realizar o exercício de se repensar o fazer pedagógico. As
relações étnico-raciais em conjunto com a educação é um importante saber de
transversalidade e interdisciplinaridade, com ações políticas e desafios
existentes em seu processo de teorização e práxis. Devemos estar atentos para
as sutilezas conceituais divergentes e também congruentes existentes, quando
vamos refletir sobre educação das, e ou para as relações
étnico-raciais. Há que se analisar as diferenças entre as abordagens possíveis
em torno desses dois grandes temas, pois podem trazer usos e significados
diversos, influenciando diretamente na ação e reflexão pedagógica. Uma das
formas de se pensar a Educação das relações
étnico-raciais, com a preposição de +
artigo definido as, é o de situar sua
história, trazendo a contextualização e o ensino das relações étnico-raciais.
Quanto à Educação e as relações
étnico-raciais, com a conjunção e,
podemos refletir sobre a perspectiva das situações que podemos encontrar das
relações étnico-raciais na educação, como a criticidade pedagógica e
epistêmica. Por fim, Educação para as
relações étnico-raciais, com a preposição de finalidade para, podemos nos referir à abordagem de um ensino que se direcione
para a igualdade das relações étnico-raciais, no entendimento de uma educação
antirracista.
PALAVRAS-CHAVE: EDUCAÇÃO; RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS, ANTIRRACISMO.
ABSTRACT
This
research is about the methodology related to the themes of education and
ethnic-racial relations. This is an initial, bibliographic, exploratory
research on Education and its intersections with ethnic-racial relations,
developed for the conclusion of the Pedagogy course by Unyleya. We seek to
revisit conceptual and theoreticians to, in dialogue, build a way of
understanding and thinking about education with ethnic-racial relations. With
that, we brought some reflections aiming to contribute to the broader debate
that involves the anti-racist struggle in education, when carrying out the
exercise of rethinking the pedagogical practice. Ethnic-racial relations in
conjunction with education is an important knowledge of transversality and
interdisciplinarity, with political actions and challenges existing in its
process of theorization and practice. We must be aware of the divergent and
also congruent conceptual subtleties that exist, when we are going to reflect
on the education of, and or for ethnic-racial relations. It is necessary to
analyze the differences between the possible approaches around these two great
themes, as they can bring different uses and meanings, directly influencing the
pedagogical action and reflection. One of the ways of thinking about the
Education of ethnic-racial relations, with the preposition of + defined article
as, is to situate its history, bringing the context and teaching of
ethnic-racial relations. As for Education and ethnic-racial relations, with the
conjunction and, we can reflect on the perspective of the situations that we
can find of ethnic-racial relations in education, as pedagogical and epistemic
criticality. Finally, Education for ethnic-racial relations, with the
preposition of purpose for, we can refer to the approach of a teaching that is
directed towards the equality of ethnic-racial relations, in the understanding
of an anti-racist education.
KEYWORDS: EDUCATION; ETHNIC-RACIAL RELATIONS; ANTI-RACISM.
No cenário brasileiro, esses temas imbricados são
complexos de serem analisados, pois a realidade brasileira muitas vezes se
mostra ambígua, como no caso de se não se assumir enquanto racista, mas poder
afirmar que conhece racistas e que, ainda assim, não intitula o país como sendo
racista. Isso pode ser observado na reportagem do El País, de Luiz Ruffato
(2014), em que ele aponta pesquisas de que 97% dos entrevistados afirmam não
ter preconceito racial, enquanto que na mesma proporção diz conhecer alguém que
tenha atitudes discriminatórias.
Tarefa ainda mais árdua é trazer as relações
étnico-raciais como pauta para projetos educacionais na prática. Por muito
tempo, nossa educação foi marcada pela educação eurocêntrica, que serviu de
base para nossos currículos escolares. Entretanto, já vislumbramos avanços, com
os debates sobre interdisciplinaridade, multiculturalismo, racismo e inclusão,
que nos apontam novas direções para a educação.
Dentro
desse panorama de mudanças, devemos mencionar as leis 10.639 de 2003 e 11.645
de 2008 - quanto à obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira e dos povos indígenas – que foram fundamentais para o
crescimento desse processo educacional e avanço acadêmico. Pudemos perceber e
participar desse desenvolvimento de uma base teórica que tem demonstrado a
necessidade metodológica de organização e de elucidação.
Aqui
propomos uma das formas de se organizar estruturalmente esses temas. No
entanto, o intuito não é restringir, pois as possibilidades são infindas, e,
sim, de trazer uma das maneiras de se pensar metodologicamente, para uma
compreensão preliminar. Nesse sentido, dividimos em três abordagens: educação
das relações étnico-raciais, educação e relações étnico-raciais e educação para
as relações étnico- raciais.
EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Como
sugestão de diretriz, iniciar com o panorama da educação das relações
étnico-raciais é perceber que ele é pressuposto para o entendimento das outras
discussões, isto é, que é o ponto de partida para a compreensão da educação e relações étnico-raciais e educação para as relações étnico-raciais.
Educação das relações étnico-raciais,
com a preposição de + artigo as, tem como reflexão o contexto
histórico e conceitual das relações étnico-raciais. Isto é, se refere ao
estudo, propriamente dito, das relações étnico-raciais, histórica e
sociologicamente.
Nesse
sentido, é importante iniciar discutindo sobre o que é raça, pois é um conceito
chave ou, melhor dizendo, conceito base do entendimento da história das
relações étnico-raciais, com seus diferentes significados construídos
sociologicamente, tanto em seu sentido cultural como no intelectual, já que
todo um saber foi sendo formado cientificamente em torno do tema, tais como o
racialismo, com teses eugenistas, e o darwinismo social, como se existisse um
evolucionismo cultural humano. Raça teve seu sentido visto de maneira
biológica, erroneamente, e de maneira hierárquica. Isso nos gerou uma distorção
conceitual, ao tratar os humanos como se tivessem características hereditárias,
com traços e tendências em comum para as chamadas raças, ultrapassando a
aparência física, isto é, os fenótipos.
Dessa
forma, a contextualização histórica das relações étnico-raciais se torna
indispensável para compreensão dessa abordagem metodológica, dentre elas,
podemos citar as leis abolicionistas do século XIX (Lei Eusébio de Queirós de 1850,
Lei Nabuco de Araújo de 1854, Lei do Ventre Livre de 1871 e Lei dos
Sexagenários de 1885, que culminaram na Lei Áurea de 1888); o
processo histórico de escravidão nas Américas, com suas diferentes
funcionalidades de acordo com a época e local; a política de embranquecimento,
com estímulos para imigração branca; e os movimentos étnico-raciais, com o
movimento negro e o movimento indígena, partindo de lutas por direito de
participação na sociedade, por reparação histórica, por demarcação de terras e
por equidade social.
Conceitualmente,
é importante mencionar sobre o epistemícidio e, por conseguinte, o
etnocentrismo e o colonialismo. Do primeiro, Tavares (2009) nos explica, em
resenha, que se trata de um conceito usado por Boaventura de Souza para
mencionar a destruição e/ou inferiorização de saberes. Isso foi ocasionado pelo
etnocentrismo, com a adoção de um padrão de comportamento que desconsidera o
que lhe é diferente, e, pelo colonialismo, período histórico marcado pela
construção de estereótipos construídos estrategicamente como forma de
exploração e subordinação de povos.
Outros
conceitos primordiais são o de miscigenação/mestiçagem e democracia racial. No
Brasil, o imaginário social identitário da nação foi sendo construído pelo
ideal de miscigenação, embora ele tenha sido pensado como meio de embranquecimento
da população. Paralelamente, era sendo veiculado uma imagem de que aqui existia
uma democracia racial, saindo da esfera biológica/racial puramente para ser
divulgada como positiva e pelo ângulo cultural com Gilberto Freyre,
especificamente com sua obra “Casa Grande e Senzala” de 1933, como nos aponta
Tadei (2002).
Mestiçagem
e democracia racial foram estratégias de poder, como forma de não citar “raça”
e colocando a nação como se ela vivesse numa harmonização/confraternização das
raça. Foi sendo tão naturalizado e incorporado que, ainda hoje, atrapalha as
ações de combate ao racismo, assim como não permite descontinuarmos esse
processo de preconceito racial, pois dificulta o reconhecimento e a tomada de
consciência do próprio racismo. Essa teoria de democracia racial foi muito
debatida e criticada por vários teóricos por ter se revelado como um mito, já
que na prática era bem diferente do que fora dito.
Tudo isso
foi tendo como pano de fundo o racismo como modus operandi. O
racismo, de acordo com Appiah (1997), pode ser entendido como extrínseco ou
intrínseco. No primeiro caso, haveria uma distinção moral, isto é, uma essência
racial, em que as raças teriam características como honestidade ou
inteligência, por exemplo. No segundo caso, o intrínseco, seria baseado no
extrínseco, onde se justificaria um tratamento desigual por conta da crença
nesses aspectos, que seriam vistos como inatos, mesmo existindo comprovações
contrárias a isso.
Também
poderíamos categorizar o racismo em três esferas diferentes: individual,
institucional e estrutural. No individual, como o nome mesmo já diz, parte do
racismo realizado pelos indivíduos, em seus processos de discriminação e
preconceitos. Já no institucional, o racismo vem dos órgãos e instituições,
públicos ou privados, trazendo privilégios ou desfavorecendo grupos, como nos
informa Werneck (2013). Por fim, o estrutural acontece com a normalização do
racismo nos mais diversos tipos de relações, sejam elas sociais, econômicas,
culturais e/ou políticas, ou seja, é a generalização do preconceito racial.
Os desdobramentos históricos do racismo nos geraram identidades étnico-raciais. A partir das colonizações e a expansão do
capitalismo, foi sendo construída uma supremacia branca no mundo globalizado. A
cultura branca europeia foi sendo levada para outros povos, praticamente de
modo impositivo e violento, com a bandeira de um ideal de civilização e
aperfeiçoamento humano a partir das teorias evolucionistas, já citadas.
O
processo de embranquecimento que vivemos no Brasil passado e que ainda vivemos
hoje por conta do racismo que acaba por reforçar a valorização da branquitude
e, por conseguinte, desvalorizar a negritude, gera privilégios, que foram
legados desde a época da colonização e escravidão, de acesso aos diversos espaços
de destaque, de poder e de inteligência aos brancos. Ele garante o predomínio
dos valores culturais dos brancos, como central, em detrimento dos negros,
posto como periférico. Em suma, gerando o racismo estrutural.
A
branquitude envolve ter a si próprio como modelo, como explica Bento (2002). A
pesquisadora intitula esse processo como “narcisismo”, por projetar no outro o
que não assume em si. Esse processo se caracterizaria por um “pacto narcísico”,
que visaria a proteção do grupo para ser o alvo de preferências e ser o padrão
a ser seguido. Alves (2010) nos diz que a brancura é vista como uma vantagem,
um benefício, servindo de “senha” para aceitação social. Por fim, Piza (2002)
informa que os brancos não perceberiam essa identidade racial de maneira tão
marcada, tanto que ela desenvolve a metáfora da “porta de vidro” para explicar
essa situação, isto é, de que existiriam sinais de materialidade, como a
maçaneta, por exemplo, mas algumas pessoas se chocam contra a porta por não a
perceberem. Esse choque contra a porta de vidro seria uma alegoria da tomada de
consciência da branquitude.
Contudo,
não devemos confundir branquitude e negritude como correspondentes, como nos
alerta Sovik (2009), pois a branquitude se realiza na desvalorização do negro,
enquanto a negritude pode ser entendida pela procura
por raízes culturais e também por uma espécie de tentativa de religação com a
África, com a busca de um passado perdido pela diáspora ocasionada pela
escravidão. Ele é um conceito que resulta da recusa da assimilação dos valores
culturais dos brancos, como uma reação à supremacia branca. Lembrando que isso
não seria natural, também deveria ter um despertar de consciência para se
afirmar como negro, positivamente, frente a esse imaginário social de preterimento.
Souza (1983) nos afirma que esse despertar seria o processo da pessoa se tornar
negro.
Nessa busca pela identidade negra, Munanga (2009) nos informa ser por
conta da alienação do seu próprio corpo, cor, cultura e história ocasionados,
além dos processos de inferiorização e baixa estima construídos. Ele nos diz
que a recuperação dessa identidade é uma aceitação de si, servindo até como
terapia de grupo, ao trazer elevação da autoestima, mas que também é base da
luta coletiva dos oprimidos, com o movimento negro, para o combate ao racismo e
em prol de uma reparação histórica.
Alguns estudiosos, como nos informa Appiah (1997), contestam essa busca
por não haver uma pureza cultural ou racial, por conta das muitas misturas,
como o hibridismo e a mestiçagem, se revelando numa espécie de busca mítica por
uma África idealizada, a qual teria acontecido com o pan-africanismo. Mas esse processo deflagrou outro, o de
reconhecer um novo papel no mundo a partir da diáspora, em que mesmo sem ter a
nascença em África, ainda assim poderiam ser identificados como
afro-brasileiros, afro-americanos etc.
Foi no
meio dessas contestações teóricas que se revelou um novo conceito, que
permitiria a afirmação da negritude sem recorrer a uma ideia de pureza cultural
ou busca pela África mítica, que é a crioulidade. Esse termo poderia servir de
compreensão da realidade cultural do mundo pós-moderno, como informa Berdn
(2004), além de agregar a noção internacional que não nega a diversidade
humana. Ele traria uma outra lógica, a do pensamento da margem, de
marginalizado, em que é possível questionar o seu lugar no mundo e a também o
da pureza do conhecimento.
Perpassando
todo esse processo e todos esses conceitos, também temos o movimento indígena
como um dos protagonistas na luta em prol de igualdade racial, de direitos e de
sobrevivência. Os índios também foram escravizados e desvalorizados
culturalmente nos tempos de colonização e mesmo após. As explorações dos
indígenas ainda foram diferenciadas, como os modos de servidão nas Américas,
além de terem sido marginalizados e dizimados em guerras. Chicarino (2016), em
seu livro, nos divulga várias tabelas que apresentam as diversas normas,
regulamentos e leis que elucidam sobre a questão da liberdade e cativeiro de
indígenas.
Das
políticas indigenistas do século XX,
devemos citar que na constituição federal de 1988 há direitos dos povos
indígenas expressos em seu texto. Além disso, tiveram órgãos, como foi o SPI
(Serviço de Proteção ao Índio – antes SPILTN), que foi substituído pela FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), que
serviram-se (SPI) e ainda servem-se (FUNAI) de mecanismos de poderes
diferentes, tendo como questão central a demarcação das terras, como nos
informa Marçal & Marçal (2015).
Outra
luta do movimento indígena é o da superação de status de tutela para uma
autonomia dos povos indígenas, isto é, pelo status
político de cidadão brasileiro, com garantias de cidadania. Essa luta é por uma
autonomia de base na emancipação política, econômica e social, com direito à
livre autodeterminação, que preconiza os direitos e respeito ao seu território,
cultura, línguas e lideranças. Nesse sentido, seria o de poder participar do
cenário político brasileiro, ao mesmo tempo que também tivessem condições de
ter a conservação da história e cultura indígenas.
EDUCAÇÃO
E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Educação e relações étnico-raciais, com a
conjunção e, nos propõe pensar de
forma mais abrangente sobre esses dois termos. Tanto se dá no que um tem de
ligação com o outro, como é o caso das
relações étnico-raciais ou da educação para
as relações étnico-raciais; como também no que um tem de intersecção com o
outro, que, no caso, é o racismo. Nesse sentido, podemos trazer os debates
pedagógicas sobre currículo e metodologia, particularmente quanto à produção de
saber, e sua relação com as relações étnico-raciais, como também discutir sobre
o racismo na educação.
Com o eurocentrismo, isto é, a visão
da Europa como centro cultural e de saber do mundo, tivemos uma produção de
saber muito marcada pelo racismo, em que a branquitude era privilegiada e vista
como os heróis da história mundial, em detrimento dos negros, indígenas e
demais povos marginalizados historicamente. Alguns teóricos argumentaram que
não havia material escrito suficiente que pudesse dar conta de ensinar a
história dos índios das Américas, dos africanos, dos asiáticos e dos povos da
Oceania. A riqueza escrita era dita como sendo dos povos europeus, tanto sobre
a nossa ciência no geral e como da História.
Após
muitos encontros de pesquisadores e movimentos políticos/sociais, essa
realidade foi sendo discutida e exigida uma mudança dos parâmetros
educacionais. O multiculturalismo e interculturalismo são conceitos que
dialogam com essas mudanças no panorama educacional, pois demonstraram como
antes o ensino era eurocêntrico, portanto, trazendo preconceitos de ordem
culturais e étnico-raciais. O currículo foi sendo questionado para que outras
perspectivas de outros povos fossem ensinadas também nos espaços escolares, um
movimento conhecido como descolonização do currículo. Ainda assim, foi
necessário ser criada uma lei para que isso pudesse ser aplicado e melhor
repensado pela sociedade brasileira. A lei em questão foi a 10.639/2003,
ampliada pela lei 11.645/2008, que traz a obrigatoriedade do ensino da história
e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas.
Além do
currículo, a própria metodologia de ensino também passou por questionamentos e
serviu de base para criticar os argumentos de que os povos não europeus não
teriam história por não ter a escrita como base de transmissão do conhecimento.
A marca da oralidade desses povos era a maneira de passar os saberes a diante,
uma ferramenta de cultura imaterial que tornou possível a disseminação de
histórias que puderam ser contadas e escritas posteriormente. Além disso, outro
método criticado foi o da história linear de ensino. As histórias e saberes
africanos e indígenas podem ser ensinados pela prática de tempo suspenso, em
que os marcos são vistos de uma maneira diferente dos que foram traçados pelos
europeus. Com isso, o ensino ultrapassaria a limitação do eurocentrismo, e de
certo modo do próprio elitismo, por trazer uma imensa quantidade de formas de
se pensar e ensinar a história, as artes e as ciências, como também de refletir
a estrutura de todas as disciplinas escolares da educação básica, porém não só
nesses espaços, como também no ensino superior e nas pesquisas acadêmicas.
Uma
das áreas de saber que se mostrou nesse processo de crítica à ciência
eurocêntrica foi a etnomatemática. Ela, como nos informa Santos (2018), pode
nos fazer refletir como outros povos não europeus também possuem sua forma de
estudar e realizar ciência. Portanto, a ciência e também as tecnologias devem
ser vistas pela ótica de que possuem historicidade e que podem ser criadas,
refutadas e reformuladas a partir de outras visões e culturas do mundo, como já
nos ensinava Said (2007).
Desse
modo, temos que entender que a produção de saber deve ser questionada e não
apenas assimilada. A epistemologia deve ser estudada, analisada, abordada e
revista pela sua infinidade de interpretações e nos contextos em que foram
escritas. Nesse sentido, há poder, há vozes ouvidas em detrimento de outras,
como já nos dizia Spivak (2010), e a Pedagogia está intimamente ligada com os
esses interesses de poder-saber, principalmente, em dar voz aos tantos atores
sociais antes marginalizados, seja em relação a gênero, raça etc. Nessa
perspectiva, podemos citar o racismo institucional, que traz dificuldades
quanto ao acesso à determinados níveis de escolaridade, assim como legitima a
apropriação dos lugares e mecanismos de poder. Em suma, são apenas alguns
grupos que detém o discurso e a hegemonia cultural.
Além
do racismo estar presente no currículo e nas metodologias de ensino, ele também
está no cotidiano escolar. Afinal, a escola é um reflexo da sociedade a qual
ela está inserida. Em relação à educação infantil, Cavalleiro (2010) informa
serem incipientes as pesquisas sobre relações étnico-raciais no Brasil e,
quando ocorrem, evidenciam a prática discriminatória entre os adultos ou dos
adultos com as crianças, mas não destacam a existência entre as crianças. A
pesquisadora alerta que há também despreparo (e até desinteresse) dos
professores para lidar com as situações de conflitos étnico-raciais entre as
crianças, há também falta de diretrizes que orientem os profissionais de
educação infantil no trato com as questões étnicas/raciais, além de existir a
precariedade e desvalorização com que muitas creches e pré-escolas infelizmente
passam.
Há um
silêncio, ou melhor dizendo um silenciamento, nas escolas que é valorizado como
forma de perdurar os conflitos étnico-raciais. No entanto, isso além de
desencorajar uma reação da vítima, acaba por deixar o ofensor se sentir
superior e continuar com essas agressões e preconceitos. Esse silenciamento
está em toda a sociedade, colocando o racismo como um problema para o negro
resolver, fortalecendo os discursos de superioridade x inferioridade. O espaço
escolar atua, então, na difusão do racismo, pela sua omissão, como Cavalleiro
(2010) nos informa, por trazer a reprodução do padrão tradicional da sociedade
brasileira em discriminar.
Sabemos
que alguns docentes e escolas procuram trabalhar com o antirracismo. Nem tudo é
silenciado. No entanto, é importante refletir não só sobre as ausências e
silêncios na luta antirracista na educação, como também como são colocadas em
práticas as tentativas educacionais de cunho antirracista. Sarzedas &
Yazlle (2010) nos informa, em sua
pesquisa no ensino fundamental, que puderam perceber como docentes negavam a
existência de racismo nos espaços escolares. Além disso, as pesquisadoras
relataram presenciar o discurso forte da democracia racial.
Em
relação ao ensino superior, são poucas pesquisas que contemplem os conflitos
étnico-raciais nesses espaços, seja entre os professores, entre os alunos, dos
professores com os alunos e vice-versa. Há que se ter mais pesquisas que
investiguem esse cotidiano, destacando os cotistas, que ingressaram no ensino
superior por meio da lei 12.711/2012 de implementação de cotas raciais e
sociais. Apesar da lei, a desigualdade no ensino superior ainda existe,
especialmente em alguns cursos específicos. Embora devemos ressaltar que há
também a afinidade com os cursos de humanas, por ser um local para se pensar o
racismo e, com isso, também revisitar o combate ao racismo.
O
preconceito racial está nos espaços educacionais, mesmo que por vezes não seja
reconhecido e/ou não combatido como tal. Ainda assim, o racismo é crime,
previsto na lei 7.716/1989. Muitas vezes ele é percebido de forma individual,
ao invés de também coletiva, isto é, deveria ser um problema a ser visto e
criticado por todos. Ele não é um problema do negro, mas sim de toda a
sociedade brasileira, isto é, de responsabilidade de todos nós.
EDUCAÇÃO
PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Educação para as relações étnico-raciais, com a
preposição de finalidade para, nos
orienta pedagogicamente para a contribuição de ações que sejam em prol da
igualdade entre as relações étnico-raciais, de combate ao racismo e na
veiculação da educação antirracista. Isso, porque a educação para as relações
étnico-raciais pode ser vista como um vir a ser, num sentido de continuidade,
de processo de mudanças de paradigmas educacionais e de perspectivas
pedagógicas.
Outras
dimensões políticas que norteiam o ensino dessa temática são quanto à reparação
histórica, conhecida como ações afirmativas. Elas foram realizadas pela esfera
pública para combater o racismo e a desigualdade social e cultural ocorrida e
ocasionada pelo nosso passado de escravidão e colonização. Reflexo disso foram
as leis 7.716/1989, 10.639/2003, 11.645/2008, 12.711/2012 e 12.990/2014.
As leis
10.639/2003, que trata da obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira, e 11.645/2008, que acrescentou a obrigatoriedade do ensino de
história e cultura indígena, mencionadas no início e decorrer desse artigo, são
as leis mais direcionadas para a educação, já que envolvem a formação de
professores e currículo da educação básica. Por isso, vamos abordar um pouco
sobre a aplicação delas. Já as outras leis, são a 7.716/1989
que torna crime o racismo, a lei 12.711/2012 que implementa as cotas
raciais e sociais no ingresso do ensino superior (embora essa lei esteja
indiretamente ligada à educação também) e, por fim, a lei 12.990/2014 que
estabelece cotas raciais em concursos públicos.
As duas
primeiras leis citadas no parágrafo anterior têm tido alguns percalços para a
universalidade da implementação. Existem professores que informam não ter tido formação apropriada ou que teriam
dificuldades em obter materiais da temática para realizar a aplicação da lei.
No entanto, essa realidade tem sido modificada. Há documentos oficiais de
educação trazendo orientações, tem materiais didáticos e paradidáticos e
pesquisas que visam nortear o trabalho dos docentes e demais profissionais de
educação, além de cursos de extensão que são voltados para a reciclagem de
professores, que dão conta da defasagem da anterior formação de professores.
O caminho
para que a lei seja cumprida ainda está sendo percorrido. Os estudos de caso,
como fontes de pesquisa, são conteúdos especiais para a verificação da
aplicação da lei, assim como servem de parâmetro ou inspiração para as práticas
escolares. O ensino por projetos também pode contribuir para esse processo, com
as relações étnico-raciais como uma temática a ser vista pela ótica da
trans/multi/interdisciplinaridade.
Seria
interessante se os cursos de formação de professores, as licenciaturas e a
Pedagogia, trouxessem as relações étnico-raciais e a educação como uma
disciplina específica obrigatória. Além disso, os projetos políticos
pedagógicos também poderiam ser atualizados com as relações étnico-raciais
estando presente em sua composição. Gomes (2010) nos explica que a escola
brasileira deveria inserir a questão étnica-racial no PPP, como um dos eixos
das práticas pedagógicas, além de articulá-la em debates sobre o currículo
escolar. Essas são algumas formas de termos avanço na aplicação das referidas
leis.
Em conformidade com essas leis, uma
educação que se direcione para as relações étnico-raciais é uma educação
antirracista. Seguindo Troyna e Carrington (Apud
FERREIRA 2012), esse tipo de educação possui variadas estratégias
organizacionais, curriculares (currículo oculto ou formal) e pedagógicas com o
intuito de promover a igualdade racial. Lembrando que isso deve acontecer desde
a educação infantil, pois, como nos alerta Cavalleiro (2010), a preparação dos
indivíduos para a existência das diferenças étnica-raciais é importante para a
formação de todos como cidadãos.
A educação
antirracista está em sintonia com a transformação das relações sociais, mas
também está intimamente ligada com o desenvolvimento integral do ser humano,
assim como de cidadania, para que nossas crianças venham a ser adultos
conscientes de sua responsabilidade em prol de um mundo mais igualitário e para
o respeito na vivência com os outros, com sadias relações étnico-raciais. Nesse
sentido, é uma educação que se entende libertária. Portanto, não pode ser
apenas voltada para datas comemorativas, com conteúdos tradicionais, como por
vezes acontece.
A partir
dessas datas, como o dia da Consciência Negra, por exemplo, a escola deveria
aproveitar para trabalhar com os alunos sobre injustiças, racismo,
preconceitos, debater sobre a história do movimento negro e indígena, ou mesmo
de como povos dominaram outros de forma política e econômica, como nos aponta
Silva (Apud MARÇAL & MARÇAL,
2015). Essa é uma das maneiras de se tratar a temática para uma educação
antirracista, além de estar de acordo com os pressupostos de Freire (2019) em
relação ao seu livro “Pedagogia do Oprimido”.
Isso nos
denota que tratar da educação para as relações étnico-raciais é falar em
política. Essa é uma postura que docentes, profissionais de educação e
pesquisadores podem trazer pra si com o objetivo de serem multiplicadores.
Afinal, há dimensão política no fazer pedagógico. As escolhas dos temas e a
forma de se ensinar está permeada de objetivos políticos, mas como Freire
(2019) nos alertava, devemos estar atentos para que seja pelo propósito
inclusivo e não excludente. Os coletivos de educadores e demais movimentos
educacionais são importantes locais para a promoção dessa educação
antirracista.
Acompanhar
e pesquisar sobre esses profissionais e movimentos são formas de disseminarmos
práticas eficazes e iniciativas com ricas experiências ou mesmo criticar
caminhos equivocados. Oscar (2018), que realizou pesquisa sobre experiências da
implementação da Lei 10.639/2003 com professores, relata que esses
profissionais possuem consciência do seu papel político na luta pela educação
antirracista e que estão cientes de que devem ocupar lugares, trazendo
visibilidade, o que ela explica ser a dimensão da experiência política na sua
atuação como profissionais de educação. Além disso, suas próprias vivências
também podem gerar conhecimento e, como sujeitos de conhecimento, podem
construí-los na prática pedagógica, como também mobilizar pares (tanto de
instituições formais ou informais de educação) e participar efetivamente das
propostas institucionais, ao protagonizarem esses processos, tais como serem
representantes dos movimentos de educação antirracista.
Gomes
Junior (2014) complementa esse pensamento e destaca a importância da literatura
nesse processo. Ele informa sobre a função social da literatura, como uma força
capaz de recriar perspectivas, conceitos e valores do imaginário social. Já
Jesus (2013), nos diz que é importante desmistificar estereótipos
étnico-raciais clássicos através do fazer educativo por meio de materiais
didáticos e paradidáticos em salas de aula. Embora, ele nos informa sobre a
resistência que muitos profissionais possuem para implementar as já citadas
mudanças por estarem acostumados com o tradicionalismo. Isso nos revela ser um
dos desafios que perpassam o fazer educacional para uma efetiva educação para
as relações étnico-raciais.
A
escola precisa entender a importância dessa temática para a transformação da
realidade brasileira e de suas desigualdades. Porém, outros segmentos também
podem colaborar para isso. As agências de fomento de pesquisa podem incentivar
mais pesquisas nessa área, buscar mais investimentos para cursos de formação de
professores dessa temática e incrementar intercâmbios intelectuais
Brasil-África e, internamente, com os povos indígenas. Os Núcleos de Estudos
Afro-Brasileiros (NEAB’s), com suas pesquisas, podem permitir a realização de
mais encontros para veiculação desse tema e lutar por superar os guetos
acadêmicos ao trazer a temática étnico-racial para o protagonismo acadêmico.
Por fim, o movimento negro e o movimento indígena podem dialogar cada vez mais
para a articulação dos debates que visem implementar as já citadas leis
10.639/2003 e 11.645/2008.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A
narrativa das relações étnico-raciais pode ser compreendida e seguida de
maneiras diversas, mas deve sempre ter como norte a promoção da igualdade
racial na perspectiva de uma educação antirracista. Aqui trouxemos algumas
formas de abordagem, de entendimento e de ação, e de sugestão de diretriz para
entender metodologicamente o diálogo existente. Alguns estudiosos poderiam nos
dizer que não deveríamos considerar os estudos nessa área como educação das
relações étnico-raciais, educação e relações étnico-raciais ou educação para as
relações étnico-raciais, mas sim de uma educação antirracista, que abarcaria
todas essas conexões. Inclusive, pela interseção que a temática permite, pode
parecer redundante e com sutis diferenças, mas elas existem. Por isso, é
adequado compreendermos essas abordagens da educação com as relações étnico-raciais,
pois elas denotam circunstâncias e diversos enfoques pedagógicos possíveis.
Além
disso, a diferenciação é necessária pelo corte entre as esferas/camadas do
assunto. A partir da especificação do tema, há uma metodologia por trás e que
entrará em ação, seja por pesquisa ou ação social/educacional a ser planejada.
Contudo, não devemos direcionar sua aplicabilidade para uma separação. O ideal
é que esse diálogo das diferentes abordagens aconteça por conta da sua
complementaridade. Afinal, falar sobre o conteúdo das relações étnico-raciais é
também trazer o racismo existente nos diversos setores da sociedade e, claro,
na educação. Isso significa estar em consonância com uma educação para as
relações étnico-raciais que vise uma sociedade mais igual e equânime.
A nossa
pretensão foi de alertar o que um está imbricado no outro, o que um complemento
no outro e, a partir desse cruzamento, traçar variados seguimentos para as
diversas propostas pedagógicas, que podem ser construídas por meio da educação
dessa temática e que buscamos demonstrar em três dimensões: a do estudo, a do
pedagógico e a da ação política. Partindo da educação das relações
étnico-raciais, com a dimensão do estudo e dos conteúdos dessa área, trouxemos
uma breve apresentação da contextualização histórica e discussão de alguns
conceitos identitários e de movimentos étnico-raciais. Depois nos direcionamos
para educação e relações étnico-raciais, com a dimensão do pedagógico,
demonstrando como o racismo está presente no fazer metodológico e na educação
como um todo. Por fim, com a educação para as relações étnico-raciais, com a
dimensão da ação política, demonstramos o ideal da educação antirracista que,
infelizmente, ainda enfrenta desafios para sua efetiva aplicabilidade.
Como
falamos de educação, relembramos a importância da formação de professores como
um setor especial. As licenciaturas e demais cursos de longa e curta duração,
de especialização e reciclagem, deve ser palco para os debates das relações
étnico-raciais. Ao refletir sobre o fazer pedagógico, metodológico e criticar o
próprio currículo, contribuímos para uma reconstrução de paradigmais
educacionais voltados para uma educação mais igualitária. Infelizmente, o
racismo existe na sociedade e perpassa todo o processo educativo, inclusive de
construção e crítica dos saberes étnico-raciais, sendo um dos recortes de
desigualdades do nosso país. Então, tratar essa temática, com seu histórico,
conceitos, principais teóricos e análises são bases para avançarmos na
implementação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
Os
professores e pesquisadores são pilares nessa ação política de mudança da
sociedade e devem ter ciência da sua responsabilidade na construção de uma
nação que vise a promoção da igualdade racial. Existem resistências, o tradicionalismo
é difícil de ser rompido, traz desconfortos, altera o que era hegemônico, mas é
necessário, é urgente. As escolhas metodológicas, avaliativas e recortes de
conteúdos deve estar em conformidade com uma educação mais crítica, menos
alienada e que entenda seu papel pedagógico de transformações, como bem nos
ensinou Freire (2019).
Os
desafios são muitos, passa pela iniciativa do professor, da escola e de demais
profissionais da educação. Visualizar uma educação antirracista é possível e
todos temos nossa parcela de contribuição para esse processo. Isso faz parte de
um projeto maior que compreende que a educação está para as relações
étnico-raciais, assim como também as relações raciais estão para a educação, no
que tange ao fazer pedagógico.
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